The Shadow Hunter

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Keep it Simple

terça-feira, 27 de março de 2012

Um belo dia, em Botafogo...

Numa certa noite no de Janeiro, no lado direito da Enseada de Botafogo, um rapaz saía do trabalho tarde e vinha caminhando tranquilamente para cruzar o viaduto Carlota Joaquina. O dia tinha sido difícil. Ele tivera desapontamentos no trabalho, notícias ruins, dúvidas pessoais, tudo isso em um momento de crise de perspectiva de vida. Algo pelo quê a maioria das pessoas passa quando é jovem e que muitas ainda passam depois de velhas.

Caminhava equipado com um headphone plugado ao seu aparelho de MP3. Ouvir sons lhe fazia bem. Sua mente ansiosa parecia se ocupar e imaginar diversas coisas livremente por sobre aquele estímulo agradável. Mesmo assim, ainda prestara atenção à quantas pessoas passaram por ele, sobre a atitude de cada uma, sobre o que estavam fazendo e, mesmo com o som ligado, sobre o que algumas por quem passou perto o suficiente estavam conversando.

Na saída do prédio, dois funcionários do departamento do sétimo andar reclamavam da gerente, fumavam e diziam que deixariam algum problema específico estourar. Parados ali, relaxando com baforadas e desabafos, transitavam desde costas curvadas e tensas até um estalo de coluna de indiferença.

Mais a frente no caminho, um táxi chegava e uma executiva de meia idade e saltos desconfortáveis vinha falando ao celular. Não eram precisas palavras para notar que ela estava zangada e que, pela postura e gesticulação, mudando da formalidade de quem deseja comunicar seu status para um sequestro emocional típico, provavelmente falava com alguém com quem mantinha relação pessoal. Provavelmente era canhota e, ao entrar no carro, após jogar agressivamente sua bolsa no banco do taxi, foi possível notar a marca onde antes havia uma aliança. Bastava observar a mão que segurava o telefone ao ouvido esquerdo.

No outro lado da rua, três pessoas desciam por uma viela, com foco típico de quem quer chegar em casa o mais breve possível. Após andar um pouco mais, havia alguns taxistas esperando corridas advindas de chamadas da central. Um deles fumava e reclamava da política do país. Em frente a eles, estava um segurança desatento à entrada de uma clínica, nitidamente esperando por uma chance de se sentar. Pelo vidro desse lugar, era possível ver uma senhora de vestido simples estampado, conversando com uma atendente oculta pelo balcão da posição de onde se olhava. Eram quatro taxis no ponto e treze carros parados no estacionamento do outro lado da rua.

Pouco mais a frente, depois da entrada de ambulâncias, ficava outro tipo de clínica, mas que só funcionava durante o dia. Estava escura e deserta. À frente, somente o viaduto Carlota Joaquina.

O rapaz, processando tudo o que foi descrito com muito mais detalhes, percebeu que após cento e cinquenta metros, do outro lado do viaduto, estavam três pessoas sentadas à grama, encostados a uma parede de rocha. Mais a frente, um largo espaço de calçada, rua, carros passando e nenhuma pessoa visível pelos próximos duzentos metros. Somente ele as notara.

Seu foco ajustou-se aos três. Desligou seu aparelho de MP3, mas o manteve equipado, como se ainda estivesse ouvindo. O solo até o centro do viaduto é de cimento. Em determinada posição havia uma falha, um buraco quebrado no chão de pedra. O corrimão de ferro a dois passos depois da falha estava amassado por uma batida leve de carro de algum outro dia. Por isso, estava mais baixo. A avenida abaixo da ponte é uma estrada de alta velocidade. Da ponte até ela, são pelo menos uns quinze metros de altura até o asfalto. Os três indivíduos estavam sentados, descalços, dois deles usando camisas largas e sujas. O outro era aparentemente mais jovem e estava sem camisa.

Ele não leu seus rostos. Sabia por que estavam ali. Num instante, toda a sua revolta com sua vida encontraram o que lhe pareceu uma válvula de escape. Anos de prática marcial, noções de inteligência estratégica, a leitura do ambiente, peso e altura, vícios de equilíbrio, nível de atenção, tudo sob seu controle. O tempo estava caminhando em câmera lenta para ele. Todas as frustrações canalizadas para uma única intenção. Algo que simplesmente não lhe surgira em palavras, mas como uma escolha pura. Eles só precisavam formalizar suas ameaças no lugar certo, exatamente aonde ele os conduziria a ir. Eles estavam à sua mercê antes mesmo de o perceberem.

Ele viu, pensou, imaginou tudo isso sem parar seus passos sequer por um instante. Quando chegou à beira da ponte, do lado oposto aos três indivíduos, foi notado. Os três se levantaram. Ele dissimulou estar distraído com seu MP3. Suas mãos em seus bolsos. Apenas o mais alto dos três começou a andar na direção dele. Os outros dois ficaram lá parados esperando. O rapaz, ainda com a cabeça baixa, fixou seus olhos nos pés descalços de seu alvo. Calculou a velocidade que precisava para fazer coincidir o encontro dele com o outro sobre a falha no chão. Esse outro, magro, 1,85m de altura aproximadamente, pisando distribuindo peso maior sobre o pé direito, mexeu com a mão esquerda por baixo da blusa, olhou para trás, tornou a se virar e começou a caminhar com passos firmes, tentando assumir uma atitude intimidadora. Um ônibus, vindo em velocidade constante do aterro do Flamengo à distância passaria abaixo da grade amassada dentro de quatro passos do rapaz.

No momento da abordagem, o alvo com o pé esquerdo na falha, o ângulo exato para controlar os movimentos do braço de uma possível arma de fogo ou branca, linha de impacto na altura do quadril alinhando com o corrimão amassado, o rapaz levanta lentamente a cabeça para ouvir o que aquele que somente precisava legitimar sua condição de agressor tinha a dizer.

Aconteceu antes que ele pudesse terminar a típica frase dos assaltantes cariocas: “perdeu playboy! Passa tu...” Neste momento exato, os olhos dele se cruzaram com os do rapaz. Ao olhá-lo, perdeu por completo a concentração. Não sabia onde estava ou quem era. Num instante mínimo depois, sua face se contorceu em terror. Ele não era nada, nunca existira, sua alma se desintegraria antes mesmo do seu corpo sentir o toque da morte.

Aquele que seria um assaltante deu três passos para trás, as mãos sobre a cabeça. Tropeçou na falha e quase caiu sozinho pelo corrimão amassado. O rapaz, ali parado o encarando. Segurou-se por pouco e, após livrar-se por instantes daquele olhar e ver o ônibus destinado a ele passar rápido sob a ponte onde ele quase caíra sozinho, virou-se bruscamente e começou a correr, gritando: “Mete o pé! Mete o pé! Corre! Nóis vai morrê! É monstro! É monstro!”

O rapaz só observava. Os três já faziam a curva para a onde a ponte daria caminho à Rua da Passagem quando ele se deu conta de que não seria desafiado. Todo o mundo que havia se ausentado voltou a ele. Olhou em volta, sentindo-se em forte torpor pela concentração. Uma senhora de vestido simples estampado caminhava da clínica em direção a ele lentamente. Ajoelhou-se, retirou o headphone, pôs as mãos na cabeça e começou a chorar.

A senhora o alcançou, exasperada com aquele jovem bem vestido ajoelhado no meio de um viaduto à noite, chorando, com as mãos à cabeça:

- Meu filho, você tá passando mal? O que foi que houve?

O rapaz, soluçando, sem se levantar retira a carteira do bolso, a abre e retira todo o dinheiro. Eram cento e setenta e dois reais, em notas de R$50,00 , R$20,00 e R$2,00. Ele estende o dinheiro à senhora e diz:

- Dona, eu lhe imploro, guarde este dinheiro e compre alguma coisa para presentear alguém.

- Por que, meu filho? Como assim?

- Comigo, ele se manifestou como uma mensagem de terror e morte. Ao passá-lo a diante, sem desejar retorno, que ele se transforme em uma mensagem de alegria! Para um menino chorão no meio da rua que acha que ser herói é como em desenho animado, é a senhora que está salvando o dia. Muito obrigado!

O rapaz se levantou, abraçou carinhosamente a desconhecida, depois deu as costas para ela, dirigindo-se rumo ao metrô de Botafogo. Ela ficou ali, parada por um tempo, olhando para aquela estranha quantidade de notas, sentindo-se bem pelo olhar de gratidão do rapaz, pelo abraço estranhamente amoroso, mas sem compreender absolutamente nada.

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